Fotografou? Não, vivi! – Cultura e Reprodutibilidade Técnica, por Mutti Kirinus

Com o avanço tecnológico na captação, reprodução e divulgação de som, imagens e vídeos, corremos o risco, no seu uso indevido, de viver uma nova forma de alienação. Um alienígena é um ser que vive em outro planeta, um alienado é um ser que vive neste planeta algo que não corresponde à realidade, ou seja, vive aqui como se estivesse em outro planeta. É comum ver o filósofo, o poeta, o artista, o rippie, ou alguém que não segue os padrões comuns de comportamento, como alguém que vive em outro planeta. No entanto, esses podem estar mais próximos da realidade do que a grande maioria. Isso, porque em nossa sociedade, a alienação é a regra, e a consciência, a exceção. O movimento rippie, por exemplo, surgiu contra a ideologia do consumismo, ‘planeta’ inventado no qual vivemos até hoje. Os problemas ambientais e o seu progressivo avanço são prova de que não vivemos nesse planeta, ou o que é o mesmo, não temos consciência dele.

Quando o conceito de alienação surgiu dentro da filosofia política, o poder de construir esse ‘outro planeta’, que se chamou de ideologia, e fazer a maioria acreditar nele, somente tinha como ferramentas o discurso oral, o discurso escrito com o lento processo de reprodução xilográfica, e gravuras. O poder de criar outros ‘planetas’ aumentou tanto que, hoje, qualquer indivíduo pode fazê-lo rapidamente. O que, a princípio, poderia ser um bem, pode também contribuir para o aumento de vícios sociais e psicológicos como o individualismo, egocentrismo, dependência, narcisismo e depressão.

No que se refere à cultura, como preservação do patrimônio histórico material e imaterial presente nas artes, a reprodutibilidade pode trazer tantos benefícios como prejuízos. Ao mesmo tempo que temos acesso a música, pinturas, livros, filmes, fotografias, dos mais renomados artistas, paradoxalmente, esses deixaram de ser referência e formadores de opinião. De uma certa forma, a quantidade sobrepujou a qualidade, que tinha seu aval no mérito daquilo que realmente mereceria ser publicado devido a seleção vinda da dificuldade de reprodução e publicação.

A evolução tecnológica torna muito mais fácil dar um like do que estar presencialmente em um concerto, exposição, palestra, oficina literária, etc. É mais fácil apertar um play do que aprender um instrumento. No entanto, assistir um concerto no computador não é o mesmo que fazê-lo presencialmente. Ouvir uma gravação ou um play back não é igual a ouvir o canto e a banda tocando ao vivo. Dublar não é o mesmo que tocar e/ou cantar. De certa forma, essa possibilidade de ouvir uma reprodução no lugar da obra pode acabar desvalorizando o próprio trabalho do artista, assim como o ensino e aprendizado das artes. Walter Benjamin, antes ainda do advento internet e redes sociais, chamou esse fenômeno de a perda da áurea na obra de arte. Estou preocupado com a perda da qualidade de presença, ou da presença mesmo. Aos poucos, podemos estar migrando para um outro planeta onde as imagens e reproduções da realidade são mais importantes que ela mesma. Isso, porque ela está limitada ao espaço e tempo real, e as reproduções podem ir além e ainda render muitos likes e elogios para bem alimentar o ego individual. No entanto, é preciso lembrar que as reproduções são apenas reproduções e a realidade é insubstituível. É bem possível que, dentro dela, existam eventos, muitos deles chamados de ‘obras de arte’, que merecem a reprodução e publicação. Mas merece, ainda mais, a presença física sempre que possível. Para saber se não vivemos em um planeta imaginário de uma esquizofrenia individual, temos sempre que pensar se essas reproduções dizem algo de valor para o outro, e quanto mais universal e menos partidário seu valor, mais chance de ter um valor real. Sim, o outro, é a única maneira de diferenciar um sonho, ideologia ou ilusão, da realidade, seja ele criado por nós mesmos ou por algum interesse comercial ou político de dominação.

Se lestes o artigo até aqui é porque vivestes esta reflexão em tempo real. Se acreditas que ela tenha um valor não meramente pessoal em busca de likes mas um conteúdo que, em maior ou menor grau, transcenda a esfera individual, compartilhe em sua linha do tempo e junte ao seu comentário o verbo no pretérito perfeito: Vivi! Isso trará o feedback e a oportunidade da reflexão ao tempo real, pelos quais sigo imensamente grato. Também comprovará que tal artigo não é somente uma mera postagem de uma imagem, que está vivo e não é mera reprodução como uma fotografia. Fotografou? Não, Vivi!

Mutti

Mutti

Helmuth A. Kirinus é mestre em Filosofia pela UFPR, formado em gestão cultural e músico. Atualmente coordena 8 projetos via lei Rouanet de incentivo à cultura e 4 via Sistema Municipal de Desenvolvimento da Cultura de Joinville. É professor de violão e coordenador da Escola de Música Tocando em Frente em Itapoá. Atua também como representante técnico do setor Comunicação e Cultura dos projetos do Ampliar pelo Porto Itapoá.

Um comentário em “Fotografou? Não, vivi! – Cultura e Reprodutibilidade Técnica, por Mutti Kirinus

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    16 de janeiro de 2018 em 11:00
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    Além de parabenizar pelo artigo quero comentar a afirmação muito feliz ao constatar que a reprodução é apenas uma reprodução e não substitui a realidade. O objeto de arte fruto da cultura humana se dá a conhecer através da energia que ela contém e transmite no momento que entramos em contato com ele. Esta energia que interage com nosso campo energético e produz a sensação de bem estar, de prazer e também de sofrimento pelas lembranças que provocam, torna-se mais presente na presença física do objeto original ou do sujeito da arte. Principalmente em se tratando de artes dramáticas e da música. O vídeo, o disco, conseguem transmitir sons e imagens, mas não conseguem reproduzir as vibrações produzidas no campo energético que ocorrem durante a apresentação ao vivo do espetáculo.
    Muito bem colocado no artigo que a reprodução através da tecnologia moderna atende mais a uma demanda quantitativa em prejuízo da qualidade.
    Parabéns por esta pertinente reflexão sobre a alienação provocado pela sociedade de consumo.

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