“Obrigado, Seu José!”, por Maria Vitória Zeni

Maria Vitoria ZeniMarcos abre a mão enquanto o senhor simpático detrás do balcão deposita algumas moedas em sua palma. Com o café na outra mão, ele se dirige à mesa de sempre — a do canto mais isolado — da padaria de sempre, no horário de sempre. Após limpar as lentes redondas dos óculos com a manga da camisa amassada, ele tira da bolsa estilo carteiro (com a qual Luisa, sua namorada, implica, mas poxa, é tão prática) o jornal do dia e passa os olhos pelas manchetes, ainda sonolento demais para de fato absorver alguma informação.

Assassinato. Mais assassinato. Violência. Acidentes. Mais assassinatos.

Ele passa a mão pelo cabelo. Lembra-se bem de quando era adolescente. Tinha um propósito. Queria fazer a diferença, viajar o mundo. Queria inspirar as pessoas. Contar histórias.

Ele ri. Definitivamente não é mais essa pessoa. Seu maior objetivo no momento é pagar todas as contas do mês e alimentar o gato. A falta de liberdade no emprego (um jornal de posições políticas duvidosas), a necessidade e o mundo levaram embora sua inspiração, e trouxeram no lugar olheiras e niilismo permanentes. As coisas parecem cada dia mais efêmeras para ele.

Pelo menos, ainda tem café todas as manhãs.

Do outro lado da cidade — mais especificamente no quinto andar de um prédio estreito e cinzento, igual a tantos outros que se esparramam pelas ruas— Clara também toma café, na cama mesmo, quente e confortável demais para levantar. As dezenas (ou quem sabe, centenas) de bolinhas de papel empilhadas no lixo evidenciam o que o cansaço provavelmente não a deixaria esquecer ao longo do dia: foi mais uma noite daquelas.

Ela sempre foi uma pessoa noturna, tal qual sua inspiração, que parecia ter vontade própria. Na noite anterior, eram duas da manhã e ela finalmente estava prestes a cair no sono, quando sua mente lhe acordou com a ideia para um conto. Em outra ocasião, ela provavelmente viraria de lado e dormiria. Mas ela sabia que não poderia se dar a este luxo depois de dois meses presa em um bloqueio criativo. Então, meio contrariada, levantou da cama e sentou-se à escrivaninha bagunçada, pronta para atender ao chamado do lado direito do cérebro.

Tudo que ela conseguiu foi escrever sobre alguém que conhecera havia algumas semanas, em uma noite em que ela não esperava nada além da hora de ir embora.

Aline e Camila sabiam o quanto ela detestava aniversários. Mas isso, claro, não as impediu de arrastá-la para a festa de um semi-conhecido, em uma casa enorme e assustadoramente abarrotada de corpos menos conhecidos ainda. Logo ao chegar, depois de cumprimentarem o aniversariante (um jovem alto e desengonçado, com uns fiapos no queixo que tinham a pretensão de ser uma barba, ela supôs), suas amigas acabaram encontrando outros amigos e, veja só, se esqueceram de apresentá-la, deixando-a desconcertada em algum ponto entre a sala e a cozinha. Ela então resolveu pegar uma cerveja e sentar-se em um canto do cômodo, próximo à janela.

Com os olhos vidrados no tosco jogo de Tetris do celular, ela poderia ter deixado de perceber o rapaz que se aproximava. Poderia. Um perfume leve e meio adocicado chamou sua atenção. Ele sorriu para ela, encarando-a por detrás de armações engraçadas. Ela ofereceu um gole de sua bebida e ele aceitou, meio tímido.

Não demorou muito para que estivessem sentados no parapeito da janela, alheios a qualquer som que não fosse o das vozes um do outro. Falaram sobre astrologia, literatura, televisão, cinema, política, animais de estimação, comida e sobre a chuva fina que caía lá fora. Ele tinha uma risada estranha, um senso de humor peculiar e uma visão tão idealista. Clara, que não era muito de conversa, sentia que poderia ouvi-lo falar por horas.

Ao chegar em casa, cinco horas depois, ela se jogou na cama e passou um bom tempo encarando o teto. Não queria dormir, mesmo com os olhos pesados de sono. Queria que a noite durasse um pouquinho mais, como se a manhã levasse para sempre a sensação confortável daquele momento e todas as memórias que piscavam na sua cabeça.

E, desde então, Clara tem escrito sobre aquele adorável estranho. Não sabia quando, ou se, o veria de novo. Tudo que ela tinha era um nome. Ela precisava ter mais um pouco dele. E aquelas páginas escritas em caneta preta eram a única forma de trazê-lo de volta.

Por algumas horas, ele havia balançado sua vida de forma que muitas pessoas nunca fizeram durante anos.

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Maria Vitória Zeni

Maria Vitória estuda Comunicação Social pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) e é viciada em filmes, novelas, séries e cultura pop em geral. Tem, na música, seu principal hobby. Sempre procura beleza nas coisas simples e tentar transformar tudo em palavras. Escreve também no Blog Bordando Entre Linhas (disponível clicando aqui).

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