“O feminicídio através dos olhos de uma mãe”, por Fátima Rigoni

Uma filha foi assassinada. O telefone tocou e poderia ser ela, pois quando eu não a respondia no WhatsApp rapidamente, ela logo ligava…

Tenho um filho – o mais velho – e três filhas mulheres. Em ordem cronológica, o Gean, a Tati, a Fran e a Bianca. Cada qual com uma história e cada história, um significado. Todas as histórias, de uma forma ou outra, se articulam e se entrelaçam.

Aqui, focarei apenas na Franciele, a terceira dos quatro, chamada carinhosamente de Fran. Ela nasceu numa Sexta-Feira Santa em 1987. Tinha 43 cm e pesava 2,450 kg. Adorava viajar, brincar com todos da família, comemorar tudo da vida e, pela manhã, acordava de mau humor. Gostava de cuidar de mim como se fosse minha mãe e depois que o pai dela faleceu, cuidava ainda mais dos detalhes da minha vida. Isso ajudou a me fortalecer. Assim como os irmãos, sofria muito com a perda do pai.

Como já adiantei, pela manhã, demorava para ficar com o seu humor em equilíbrio. Quando alguém lhe desejava bom dia, logo questionava: “bom dia pra quem?”. Isso demorava, pelo menos, meia hora, mas passando esse tempo, ela era irreverente, alegre, piadista e não deixava ninguém muito quieto. Que saudades daquele sorriso aberto e barulhento. Era fiel às suas poucas, mas verdadeiras amizades.

Falando do cuidado, ela começava cedo, seguia durante o dia até o “boa noite”, talvez porque não tivesse filhos, aliás não tinha filhos humanos, mas tinha dois filhos pets. Teodoro e Shakira. Tinha sonhos e, dentre muitos, o de ter uma filha ou um filho. Inclusive, fazia tratamento para engravidar.

O telefone tocou e não era ela. Tudo mudou! Hoje, é um número estatístico dentre as mulheres assassinadas no Paraná. Foi assassinada no dia 31 de maio deste ano (2023) e os suspeitos do assassinato são o marido e o seu comparsa.

Quando o noticiário fala em violência e assassinato de mulheres, nos emocionamos, nos revoltamos, falamos de feminicídios e, no outro dia, continuamos nossas vidas. Quando uma filha é assassinada, morremos, outra mãe há de renascer, pois naquele momento, aquela mãe morre. O que sinto ainda é imensurável. A falta que uma filha faz não se mede, assim como a irmã para os irmãos. O sofrimento não pode ser avaliado. Eles, os irmãos, se encontravam todas as sextas-feiras para jogar vôlei e lanchar junto aos amigos. Aquela mãe que assistia os filhos brincarem, rindo, vibrando a cada saque acertado e, depois do jogo, se reunindo para lanchar, morreu. Outra tem que renascer, pois tem outros filhos que a chamarão de mãe, mas a Fran não me chamará mais.

Meu orgulho daquela família unida era enorme e, certamente, muitas pessoas me ouviram falar sobre essa união. Hoje, estamos quebrados, sofridos, desestruturados pela morte dela e pela forma como se deu o fato. Aqui, não vou descrever como foi e o motivo de ser considerado feminicídio, pois basta procurar na internet, mas desejo refletir sobre o assunto.

Vejamos alguns dados: no primeiro semestre de 2023, entre janeiro e junho, pelo menos 599 feminicídios foram consumados e mais 263 tentados no Brasil. Em 72% desses, o assassino ou agressor era o marido ou o ex. Atualmente, segundo o monitor de Feminicídios no Brasil, do Laboratório de Estudos de Feminicídios (LESFEM), o País ocupa o 5º posto em escala mundial, ficando abaixo apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia.

Precisamos compreender, analisar e refletir as dinâmicas sociais que produzem esse tipo de violência e assassinatos, pois estamos vivendo um problema social que tem a ver com a cultura patriarcal de nosso país. Cultura essa, que é expandida por homens e por nós, mulheres, e se inicia na educação desigual dada para meninos e meninas. Temos outra ferramenta que influencia de forma agressiva e nem percebemos: estou falando da mídia.

A mídia (conjunto de diversos meios de comunicação que dá suporte de difusão da informação é um meio de expressão capaz de transmitir mensagens) influencia na educação, nas escolhas que fazemos, na cultura, etc. Pensando nisso, comecei a observar que em muitos filmes de ação, que tem como principal expectador o público masculino, veremos a mulher sendo subjugada e humilhada, seja pela violência física, psicológica, pela traição, estupro, ou vulgaridade, porém também observaremos que, nas novelas, em alguns estilos musicais e/ou em vídeos na internet, também encontraremos como conteúdo, um homem adúltero, que trai, se arrepende ou abandona e uma mulher que, na maioria das vezes, está pronta para perdoar  e fazer sacrifícios em prol do amor desse homem. Também em reuniões, palestras, discussões, entre outros, as pessoas costumam ouvir e acreditar mais na versão masculina, assim como acontece quando as pessoas ouvem sobre violência ou discussão entre casais. Também comecei a observar pessoas justificarem a violência contra a menina ou mulher culpando-a pela forma como se veste, como fala, ou pela atitude mais independente. Além disso, temos que observar alguns termos preconceituosos que utilizamos entre nós. Por exemplo, para menosprezar um homem, falamos que ele parece uma mulherzinha. Já para evidenciar uma mulher, é comum compará-la a um homem. A cultura patriarcal dá estrutura para tudo o que relatei acima.

O que é o feminicídio, então? Segundo Meneghel e Portella, duas autoras de um artigo intitulado “Feminicídios: conceitos, tipos e cenários”:

– o conceito de feminicídio foi utilizado pela primeira vez por Diana Russel em 1976, perante o Tribunal Internacional Sobre Crimes Contra as Mulheres, realizado em Bruxelas, para caracterizar o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres, definindo-o como uma forma de terrorismo sexual ou genocídio de mulheres. O conceito descreve o assassinato de mulheres por homens motivados pelo ódio, desprezo, prazer ou sentimento de propriedade. (Meneghel&Portella, 2017)

Porém, quando se trata da morte de uma filha, o feminicídio se torna dor, dor, dor e dor. A mãe passa dias e meses se questionando a forma como a educou e se culpa por não ter visto o que estava claro. Quando uma filha é assassinada, refletimos sobre todas as filhas: as minhas e as suas, as que estão no presente e as que virão. Chegou o momento de pararmos para dialogarmos entre os membros da família, chamarmos a atenção sobre o assunto nas escolas, na igreja, na e com a sociedade em geral. Reflitamos, pois a mídia com seus preconceitos, expressão machista e patriarcal não para. Muitas pessoas acreditam na cultura de “coisa de homem”. Não tenho a solução, mas estou aqui para convocar todas e todos a refletirem sobre isso e, quem sabe, possamos sugerir aos políticos, ações que façam realmente a diferença. A minha Fran e todas as Frans que foram assassinadas não voltarão, mas podemos salvar as que estão nascendo…

Franciele Gusso Rigoni (esquerda) e Fátima Gusso Rigoni (direita). Foto: Arquivo pessoal.
Fátima Gusso Rigoni

Fátima Gusso Rigoni

Mestre em Ciência da Educação; especialista em História e Filosofia da Ciência; especialista em Alfabetização e Letramento; e especialista em Ensino de Artes; Fátima Gusso Rigoni é graduada em Educação Artística; professora com experiência de trinta anos; palestrante; coordenadora e professora de cursos com formação continuada para professores e gestores; autora de livros didáticos e de conto; autora de projetos premiados voltados à Educação; e artista plástica.

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