Perfeito, não, melhor, perfectível

Mutti principalMas para que tudo isso? Essa pergunta do artigo anterior merece uma complementação. Para que o fomento e divulgação de publicações, apresentações artísticas, preservação da cultura oral e popular, ou erudita, registros musicais, etc? Tudo isso porque além do ser humano ter a capacidade de admirar-se com o mundo, ele é o único capaz de transmitir essa admiração em forma de cultura (no sentido patrimônio). Diferente da natureza que é em si mesma perfeita, somos perfectíveis, passíveis de constante aperfeiçoamento. De certa forma, conseguimos transmitir nossas conquistas para outras gerações de uma forma que vai além da lenta evolução das espécies que acontece somente através do DNA. É claro que o que possibilita este fenômeno é a linguagem, e aqui quase recaímos no tema da responsabilidade no uso da mesma e nas mudanças das formas de comunicação. Esta, porém, é uma outra reflexão.

Como perdemos a visão do todo e nos tornamos imediatistas perdemos também o reconhecimento da história em nossos dias. Seja de maneira oral ou escrita, somente por causa da transmissão, e com ela a preservação ao longo das gerações, daquilo que foi produzido pelo homem, vivemos o avanço em todas as áreas. É preciso constantemente esforçar-se para não perder esta lembrança, pois ela nos compromete em uma espécie de dívida que, ao invés de nos deixar mais pobre, nos enriquece. Essa riqueza está presente até mesmo em nosso cotidiano. Como ilustra bem Câmara Cascudo, um dos maiores estudiosos da cultura popular Brasileira: “Há ‘novidades’ que contam 23.000 anos(…)Dar adeus e saudar com a mão agitada ou tocar levemente na fronte não tem idade. O andar rebolado de nossas donas é um produto de importação. Trouxe-o o africano banto que o teria da polinésia, onde o chamam onioi, e é uma técnica de sedução, ministrada regularmente. Estirar a língua é desaforo para os romanos três séculos antes de Cristo. Leite de côco veio da Índia. Cuscuz é árabe. A cuíca também. Sarapatel é hindu. O gesto feio de ‘dar bananas’ é europeu. O ‘cheiro’, carícia olfativa que damos nas crianças, é chinês, como é chinês o papagaio de papel e o foguete, indispensável para nossas festas. O jogo de capoeira é do sul, e o (a origem rítmica do) samba do norte, de Angola.” Etc.

No entanto, como tudo está fantasiado de ‘novidade’ esquecemos que qualquer solo de guitarra deve referência ao alaúde, ao violão e a invenção da escrita musical (séc. IX) que possibilitou a evolução da música ocidental como a conhecemos hoje. Os bordões do violão sete cordas no choro, música do séc. XIX e XX, deve referência a contrapontística e baixos contínuos do período barroco, séc. XVI. Por isso a importância da preservação e divulgação do patrimônio cultural de todas as épocas, para darmos continuidade a uma história de perfectibilidade iniciada há mais de 5.000 anos.

Um outro ponto importante deste perfectível, de sermos passível de aperfeiçoamento, é que temos a liberdade de fazê-lo ou não. Através do livre arbítrio posso abrir mão deste aperfeiçoamento através da história e referências culturais que hoje estão a disposição de um simples ‘click’, um livro, vídeo, uma troca de experiência, ou mesmo uma boa conversa. Estou satisfeito com o que tenho e delego esse serviço aos outros. Como segundo passo da divisão do trabalho e perda da visão do todo no capitalismo, vem este, a imunização da responsabilidade na terceirização dos serviços. Seguindo esta tendência posso delegar a educação dos filhos para a escola, da administração pública para os políticos, do estudo e da reflexão para os intelectuais e da cultura para os artistas e produtores. Com a perda da referência ao passado e também ao futuro pelo estreitamento de nossa visão ao imediato, perdemos também a sensação de pertencimento com os outros em sentido mais amplo, sensação necessária a qualquer postura ética ou atitude de cidadania. Pensando nisto escreveu Brecth: ‘Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis.’ E outro poeta latino americano, o qual não achei a referência, falando da sua arte e suas dificuldades políticas e econômicas, diz que ‘irá morrer como um pássaro alvejado, batendo as asas.’ Perdendo esta noção do tempo histórico esquecemos também de nossa finitude e que podemos usar esta liberdade somente durante um breve período da história, qual seja, aquele em que estamos vivos.

Mas essa busca da perfectibilidade não é exclusividade de poetas, filósofos ou artistas. Existe uma narrativa de uma história pessoal que inspirou esta reflexão. E, seguindo Confúcio, que nos aconselha a enxergar no outro sempre um mestre, guardando para si suas qualidades e rejeitando suas imperfeições, guardei essa história e compartilho com vocês: O ‘mestre’ Antonio Gusso conquistou essa insígnia no trabalho da construção civil. E, buscando sempre a melhor execução do seu trabalho tornou-se referência, e era constantemente consultado pelos arquitetos e engenheiros envolvidos na obra sobre a melhor maneira de fazê-lo. Como era também natureza envelheceu, adoeceu e veio a falecer. Deixou como herança a força de vontade e a busca constante desta perfectibilidade, fazer o melhor possível sempre. E, assim como o pássaro alvejado do poeta, horas antes de falecer chamava pelo filho Jorge, que trabalhou sempre consigo, para que ele consertasse a pintura das paredes do leito do hospital em que estava, pois estavam mal acabadas. Assim nos contou o seu filho, Antonio, que carrega essa herança e a transmitiu também para o neto, Thiago, redator deste jornal. Ainda restam algumas horas para tornar o mundo um pouco mais perfeito. Perfeito não, melhor, perfectível.

Mutti

Mutti

Helmuth A. Kirinus é mestre em Filosofia pela UFPR, formado em gestão cultural e músico. Atualmente coordena 8 projetos via lei Rouanet de incentivo à cultura e 4 via Sistema Municipal de Desenvolvimento da Cultura de Joinville. É professor de violão e coordenador da Escola de Música Tocando em Frente em Itapoá. Atua também como representante técnico do setor Comunicação e Cultura dos projetos do Ampliar pelo Porto Itapoá.

10 comentários em “Perfeito, não, melhor, perfectível

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    3 de abril de 2016 em 10:49
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    Hasta el último aliento, aprendamos ,gracias por las enseñanzas

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      10 de abril de 2016 em 09:34
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      Gracias Fresia por la lectura y comentarios. Al saber que no estamos solo en este reto, nos sentimos más fuertes y animados para seguir hasta el ultimo aliento. Gracias!

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    2 de abril de 2016 em 19:59
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    Parabéns, este artigo, tão rico em informações, veio enriquecer nossa forma de pensar e refletir até sobre nós mesmos!!!!!

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      10 de abril de 2016 em 09:06
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      Obrigado Zeneide pelos elogios e principalmente pela leitura. O enriquecimento acontece nesta troca. O seu comentário me lembrou um poema do Paulo Leminski que versa mais ou menos assim. “Esse negócio de querer saber quem a gente realmente é ainda vai acabar nos levando além.” Abs.

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    2 de abril de 2016 em 11:05
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    Mais uma esplêndida reportagem onde necessitamos a busca por um mundo melhor transmitindo nossos conhecimentos e sempre aperfeiçoando não em busca de uma perfeição mas sim procurando transformá-lo em um espaço melhor pra se viver. Assim deixando “nele”o nosso melhor… valorizando cada um com sua cultura,seu modo de ser,respeitando os princípios de sobrevivência e costumes de cada um…Parabéns Mutti sempre ajudando a transformar o mundo no melhor através de suas reportagens…

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      10 de abril de 2016 em 09:01
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      Obrigado Keila pelos elogios. Sim, concordo contigo podemos fazê-lo pois somos passíveis de aperfeiçoarmo-nos e temos liberdade para isso, mesmo que limitados podemos fazer algo dentro destes limites. Obrigado pelo comentário e principalmente pela leitura. Abs.

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    1 de abril de 2016 em 16:45
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    Só posso bater palmas para este texto. Parabéns Mutti!!!

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      10 de abril de 2016 em 08:52
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      Obrigado Deborah pelos aplausos, hehehe. Fico contente que tenhas gostado e que estás acompanhando a coluna. Obrigado pela leitura, Abs.

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    1 de abril de 2016 em 14:02
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    SIM PROFESSOR MUTTI!
    ENTENDO QUE A FILOSOFIA É A BASE DA CULTURA.
    FILOSOFAR, EM MEU MODESTO ENTENDER, É DAR ASAS À IMAGINAÇÃO; VISANDO CONCEITUAR ATÉ A PERFEIÇÃO. OU, TORNÁ-LOS (OS CONCEITOS) PERFECTÍVEIS.

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      10 de abril de 2016 em 08:49
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      Sim Dante, não só a Filosofia, mas ela também é um constante aprofundamento dos conceitos e lapidação dos mesmos. O que é legal tanto na Filosofia como nas artes é que esse trabalho é infinito. Sempre podemos acrescentar algo.

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