“Deixa a boiada passar”, por Werney Serafini

Nestes tempos de pandemia, justo as vésperas da Semana do Meio Ambiente, perplexo, – para não dizer outras coisas – com o pronunciamento do Ministro do Meio Ambiente, foi inevitável refletir sobre algumas vivências da vida da gente.

Como que do nada, surgiu a recordação de um lugar num tempo distante. Uma fazenda de café no noroeste do Paraná onde por anos à fio, passei as férias de julho com meus irmãos, as melhores das que tenho lembrança.

Ficava em Goioerê, pequena cidade no interior do Paraná, que nossa família ajudou a construir. O lugar, Fazenda Santa Monica, cujo nome foi homenagem de meu pai à Mônica minha mãe. A mais ou menos uns seis quilômetros da cidade, com acesso por uma estrada de terra vermelha que quando chovia era intransitável e, em tempo seco, uma poeira só.

Da lavoura de café diziam ser modelo na região. Pudera! Menina dos olhos do Dr. Mansueto. Café Bourbon e Novo Mundo, cuidado e conduzido na mais moderna técnica da época. Colheita manual, feita no pano, várias vezes. Colhidos os grãos vermelhos e maduros, para obter classificação “bebida estritamente mole”, tipo colombiano. Dizia ele que fazer café todos fazem, mas de qualidade, poucos. E que café! Aroma intenso, suave e acerejado.

Um carreador, cafezal em ambos os lados, levava à sede da Santa Monica. Tudo muito simples, mas bem cuidado. Uma confortável casa de madeira, peroba nativa, fixada ainda verde, pois seca não entrava prego. Feita para durar cem anos, dizia-se por lá. Fogão à lenha com serpentina para aquecer a água do banho. Em frente à casa, o despolpador e o terreiro para secar o café, ao lado, a tulha dominando a paisagem.

Aos fundos, um pomar com frutas de todo tipo, parreira de uvas, laranja, pera, abacate entre outras, no final uma linha de mangueiras. Ao lado, um reservatório de água, bombeada por um “carneiro” instalado no riacho, distante uns quinhentos metros. Embaixo, a cisterna para irrigação do pomar, usada como piscina nos dias quentes. Diversão da gurizada!

Na sequência, o escritório da Fazenda, a escola Ricieri Serafini, nome de meu avô, a casa do seu Chico, o capataz, um galinheiro telado e a maternidade da criação de porcos, limpíssima, água corrente, pois segundo meu pai, os porcos também gostam de limpeza. Os dejetos, canalizados, eram usados na adubação das plantações. Mais adiante, o curral e o estábulo, com as mulas utilizadas para o transporte da colheita. Ali ficavam os cavalos, uma curtição! Minha e de meus irmãos. O predileto era o Sarandi, garanhão persa, pintado que nem onça. Sereno, mangalarga marchador, branco que nem neve.  Corisco, bom de rédea, ligeiro como o vento. Cazuza, o cearense tratador dos animais, dizia que quando chegavam os meninos do Dr. Serafini, os cavalos arrepiavam o pelo e sumiam no pasto, pressentindo que não teriam mais sossego. Coitados, eram montados do nascer ao pôr do sol.

Em outro carreador, a colônia. Uma dúzia de casas onde viviam as famílias dos trabalhadores. O chefe cuidava do cafezal e os familiares cultivavam feijão, arroz, milho, produtos de subsistência, cujo excedente vendiam na cidade. Produziam de tudo, leite, ovos, carne, banha, legumes e frutas. Compravam apenas o açúcar e o sal. Ambiente rural, simples, mas com paz e fartura.

A divisa aos fundos, dava num riacho límpido e transparente. Abastecia de água toda a fazenda. Cercado por mata nativa, muito além dos trinta metros obrigatórios pelo código que já mudaram, era intocável. Se mexer, a água acaba, era o que dizia meu pai. E que floresta!  Perobas, cedros, canelas, pau-marfim e outras mais que não lembro. E a bicharada? Pássaros a perder da conta. Guardo remorsos das pelotadas dadas com o estilingue ou do estrago que fazia a espingarda pica-pau de cabo de guarda-chuva, carregada pelo cano. No remanso do córrego, lambaris em profusão que pescávamos com massa feita de farinha e água.

Iguais a Santa Monica, eram muitas. Fazendas e pequenos sítios ocupando a redondeza de Goioerê. Assim era o interior do Paraná, especialmente o norte e noroeste do Estado. Fazendo as contas, não passaram mais do que cinquenta ou sessenta invernos.

Anos depois, na maturidade, passei por Goioerê e saudoso fui até a Santa Mônica. Não mais nos pertencia. Mônica, com receio de invasões resolveu vendê-la. Estava muito próxima à cidade. Consultou os filhos que disseram não ter interesse em tocá-la. Tinham outras ocupações e afazeres na capital. Assim, acabou incorporada, como tantas outras pequenas e médias propriedades rurais, pelas fazendas maiores, voltadas ao cultivo de culturas mecanizadas como soja, trigo, milho, cana e algodão, commodities internacionais do agrobusiness.

De tudo o que existia encontrei apenas um galpão abrigando maquinários. No lugar do café, terra virada, soja, milho e algodão. A colônia não mais existia. Daquela gente toda apenas dois, um tratorista e um guardião armado para impedir a entrada de estranhos. A mata derrubada para ampliação das plantações. Do riacho, um filete d’água. Pássaros, nem falar, sumiram. A impressão foi a de estar em um deserto verde a perder de vista.

Olhando a nova paisagem, me perguntei: E o Cazuza? E aquele povo todo? Onde estarão? Quem sabe na periferia de uma grande cidade, nas imensas favelas surgidas com o êxodo rural.

Percebi o outro lado do progresso que, na maioria das vezes, é simplesmente omitido.

Fazendo uma analogia, fiquei pensando… Aprovar tudo, flexibilizar sem critério, desburocratizar, como disse o ministro, deixar a boiada passar enquanto as atenções estão voltadas para o desespero da pandemia… Santa Luzia! Nos proteja! Quanta insensatez, quanta irresponsabilidade.

Pausa feita, de volta ao dia a dia da reclusão involuntária, “desacorçoado” como diziam lá no Goioerê.

Itapoá(outono), junho de 2020.

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Werney

Werney Serafini é presidente da Adea – Associação de Defesa e Educação Ambiental. Acredita no desenvolvimento de Itapoá com a observância de critérios ambientalmente adequados.

Um comentário em ““Deixa a boiada passar”, por Werney Serafini

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    8 de junho de 2020 em 15:57
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    Werney você me surpreendeu com essa sua narrativa!
    Adorei o texto e tento imaginar o que você sentiu ao retornar esse, outrora, paraíso!
    Sempre sonhei em morar e viver numa fazenda mas minha família foi mais urbana, que felicidade você teve nessa fase da vida.
    Agora entendo a sua sensibilidade com o meio ambiente.
    Eu tenho meu jardinzinho que passo algumas horas cuidando, principalmente nesse período.
    Um abração e parabéns, vou ler os outros textos !

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