
Menos é Mais, por Mutti Kirinus

Na escola, ainda pequenos, aprendemos a somar, subtrair, multiplicar e dividir. Decoramos a tabuada para podermos multiplicar rapidamente. Assim, adultos, seguindo a ideologia do capitalismo, onde o princípio básico é o acúmulo de capital, sabemos bem somar e multiplicar e o fazemos com satisfação. No entanto, as subtrações e divisões são muito doloridas para o individualismo presente.
Mas onde então que o menos é mais e o que isso tem a ver com arte e cultura? Explico: quando falamos em cultura (no sentido antropológico e também de patrimônio) estamos falando de algo que é comum a um grupo de pessoas de determinada época e região, e (no sentido patrimônio) pode tornar-se importante e comum a toda humanidade.
Segundo Roberto Espósito na raiz da palavra ‘comunidade’ existe um ‘munus’, um ‘menos’, traduzida também como um falta, uma dívida. Este ‘menos’ é a essência de toda comunidade e que não se pode perder de vista para não cair em deturpações do seu sentido primeiro como aconteceu no caso do Fascismo, Nazismo, o terrorismo fundamentalista e outros movimentos pseudo-patrióticos ou religiosos.
Ou seja, o princípio da comunidade não é um adjetivo que se soma a um grupo de pessoas, por exemplo, a comunidade dos azuis, a comunidade dos vermelhos, dos a favor do impeachment, dos a favor da democracia, dos corinthianos ou são paulinos. O princípio de toda comunidade é uma subtração de seus interesses individuais para um interesse comum para o qual você adquire uma dívida. O sentimento de culpa, remorso, ou compaixão presente em todo ser humano, e ausente no caso patológico dos psicopatas, é prova de que esta dívida é parte de nossa essência. Um caso de homicídio nos provoca revolta pois foi transgredida esta dívida que temos uns com os outros.
E o que isso tem a ver com a arte e cultura? Lembra que no artigo ‘Antes dos aplausos’ dissemos que a arte proporciona um momento de abertura, de admiração, igual aquela presente em nossa primeira infância? Lembra também que dissemos em outro artigo que o ser humano é imperfeito porém sempre perfectível? Então, esta abertura da admiração e o fato de nunca estarmos completo na nossa ‘perfectibilidade’ é o ‘menos’ que estamos apontando. Talvez hoje o que mais contribui para a ignorância não é a falta de informação, mas a falta de reflexão sobre as mesmas, o imediatismo das conclusões apressadas. Se a arte proporciona esta admiração esta abertura. A Filosofia que é o exercício da reflexão a tem também como princípio. A atitude filosófica tem na sua essência colocar nossas certezas entre parênteses e abrir mão delas gerando a condição de abertura necessária para a reflexão sobre as mesmas. Talvez, hoje em dia, até o excesso de informação prejudique tal possibilidade de enxergar e viver esta abertura.
Tem uma historinha utilizada em aulas de Filosofia que ilustra este fato. Resumindo: ‘Um professor de filosofia na sala de aula enche um aquário vazio com bolas de tênis, e pergunta aos alunos se está cheio. Sim, respondem. Depois coloca bolas de gude que preenchem os espaços vazios entre as bolas de tênis. Pergunta novamente e tem a mesma resposta. Depois derrama areia por cima do que já havia e conclui: As bolas de tênis são as coisas importantes em nossas vidas, valores, princípios, ideais, sonhos, as bolas de gude são outras com menor importância e a areia são futilidades. Agora, se preenchêssemos primeiramente o aquário com areia sobraria espaço para o restante?’
Sem querer entramos no tema do artigo ‘Você tem fome do quê?’. Voltemos ao ‘menos’ e a abertura que a arte e a filosofia proporcionam e que é essencial para a vida em comunidade. Uma panela, usada para matar a fome, tem o seu valor pelo seu vazio. Da mesma forma que a nossa capacidade de aprender e nos aperfeiçoar é um constante exercício de humildade, de um abrir mão da completude e certezas da nossa ignorância(por mais esclarecida que ela seja), de assumir um não saber, um ‘menos’, uma falta, um vazio constitutivo.
Enfim, precisamos enxergar este ‘menos’ e praticar esta subtração e divisão, onde fazemos parte de um denominador comum, que acontece quando assistimos, ou participamos, de um espetáculo artístico, quando refletimos sobre um assunto e compartilhamos nossas idéias, ou quando vivenciamos este ‘comum’ em comunidades religiosas (lembrando que no artigo ‘Melhor e Antes’ recorda-se a inseparável relação entre arte e religião na sua origem.)e nos sentimos nestes momentos em união, iguais, em comum, graças a subtração de nossa individualidade proporcionados por estes momentos.
Desse modo, nossa sensibilidade provocará indignação não só para os gritantes casos de homicídio, mas também para com todas as injustiças e desigualdades sociais e a falta de responsabilidade social dos detentores do poder político e econômico. Enfim, através deste ‘menos’ é que seremos ‘mais’. A humanidade deste ‘menos’ deve ser o princípio básico da segurança a ser alcançada não somente pela punição, também violenta, mas criando e fortalecendo valores presentes em uma dívida que nos torna mais ricos em valores imateriais. E como bem resume a frase de protesto: ‘Em lugar onde não há atividades culturais, a violência vira espetáculo”. Deixo vocês com o belíssimo poema de Lao Tsé que nos faz refletir sobre este vazio constitutivo. Até o próximo artigo, se Deus assim permitir.
Lao Tsé
Trinta raios convergem para o centro da roda
Mas é o vazio do meio
Que faz andar a carroça.
Dá-se forma à argila para fazer vasos,
Mas é do vazio interior
Que depende seu uso.
Uma casa é furada com portas e janelas,
É ainda o vazio
Que permite a habitação.
O Ser dá possibilidades
É através do não-ser que nós as utilizamos.
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Helmuth A. Kirinus é mestre em Filosofia pela UFPR, formado em gestão cultural e músico. Atualmente coordena 8 projetos via lei Rouanet de incentivo à cultura e 4 via Sistema Municipal de Desenvolvimento da Cultura de Joinville. É professor de violão e coordenador da Escola de Música Tocando em Frente em Itapoá. Atua também como representante técnico do setor Comunicação e Cultura dos projetos do Ampliar pelo Porto Itapoá.
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