Melhor e Antes, por Mutti Kirinus

Mutti principalPara chegarmos em algum lugar temos que encontrar meios de desviar os obstáculos. Antes, é preciso reconhecê-los! Mas então, o que dificulta o trabalho relacionado às artes e à cultura (no sentido de patrimônio)? Apontamos nos artigos anteriores alguns deles: a falta de informação sobre as leis de incentivo, o imediatismo, a falta de consciência sobre a importância da História para nossas vidas, a ausência de visão do todo na divisão do trabalho, a isenção de responsabilidade presente na terceirização dos serviços, a reprodutibilidade técnica utilizada para produzir a cultura de massa veiculada pelos meios de comunicação com fins comerciais e/ou políticos, etc…

O que acontece é que a arte, de maneira geral, tornou-se apenas mais um produto de consumo. Da mesma forma que o artista é apenas o trabalhador de um segmento da sociedade de consumo. Se pensarmos em sua origem, seja no segmento da música, pintura, escultura, dança ou teatro, a arte é inseparável da religião. Ou seja, ela possuía um caráter existencial. Um sentido mais amplo. Uma promessa de felicidade. Caso não levemos isto em consideração, iremos tratar cada período histórico da arte como um despojo, ou resíduo, de sistemas ideológicos anteriores. O sentido que faz estes períodos formarem um todo coerente reside justamente nesta promessa inerente a cada obra de arte e que cada indivíduo assimila conforme seu contato com este patrimônio. Para diferenciarmos uma simples mercadoria de uma obra de arte, podemos utilizar, transportando do segmento literário para os outros, a fórmula do nosso querido poeta Gaúcho: ‘Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte, não tem sentido. É um pobre chocalho de palavras’. (Mário Quintana)

No fetichismo, literalmente ‘feitiço’, da mercadoria na sociedade de consumo, o produto ganha um valor sobrenatural e de culto exterior a quantidade de trabalho e de matéria prima que necessitou para sua produção, um valor apenas comercial e, portanto, sem vínculo com a realidade. A arte dentro desta corrente dos outros segmentos da produção foi perdendo a referência do seu sentido primeiro e perdendo, assim, a força que lhe era inerente de representação do sentido existencial humano e tornando-se apenas mais um produto.

Seguindo o curso da história da arte e da cultura (no sentido mais amplo) da sociedade com seus respectivos períodos, vemos que a mesma é inauguradora de novos sentidos ideológicos por onde a promessa de felicidade deva seguir. Ela é libertadora e impulsionadora para a direção desta promessa, muito embora não possa dar garantia de sua realização. Deste modo, ela é sempre marginal, à margem, por ser ela mesma revolucionária, pois tem dentro de si o intuito de impulsionar o estado vigente para frente, em direção da promessa que, assim como uma utopia, nunca se cumpre, mas é sempre perfectível.

Devido aos diversos fatores já mencionados no primeiro parágrafo, vivemos o que se conceituou na filosofia contemporânea de uma ‘nova barbárie’. Este conceito, tendo seu lugar histórico no período após a II Guerra Mundial, se caracteriza por uma descrença na própria cultura. Adorno a contextualiza desta maneira e põe em cheque até mesmo o trabalho do artista mais engajado: ‘existe uma razão objetiva da barbárie, que designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que, conforme sua própria natureza, promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre o trabalho físico e intelectual. Desse modo, ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disso foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação pacifica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez disso, a raiva se voltou contra a própria promessa, ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir’. (Educação contra a Barbárie)

O fato é que como artistas e/ou como amantes da arte e da preservação e divulgação deste patrimônio, e consequentemente, dessa promessa, reconhecemos o valor, mesmo que muitas vezes de maneira inconsciente, que essa possui. Sabemos que, para realizar as promessas presentes nela, dependemos de fatores políticos, econômicos, educacionais, de conscientização das massas, etc. No entanto, sabemos que individualmente ou em pequenos grupos podemos dar um passo nessa direção. Como bem ilustrou Eduardo Galeano: ‘A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar. ’

Somente o que podemos fazer é preparar o caminho, já que nossas armas são o corpo, a palavra, cores, pincéis, instrumentos musicais… E a violência vai contra o sentido primeiro da promessa que buscamos. Vêm ao encontro desse objetivo, os versos de Chico Buarque, que atualmente tem sido vítima de um ódio coletivo que, ignorando a importância da sua obra para a cultura nacional e presente nesta nova barbárie, tem sofrido constantes ataques sem fundamentos a sua pessoa e trabalho por tornar pública, há tempos atrás, sua intenção de voto a presidente. Escreve Chico, em uma espécie de ‘moral aberta’, que Bergson atribuiu aos poetas, santos e profetas, revelando a intenção da arte:  Qualquer canção de amor / É uma canção de amor / Não faz brotar amor / E amantes / Porém, se essa canção / Nos toca o coração / O amor brota melhor / E antes.

PS: Sobre a obra de Chico Buarque e o contexto histórico político do período da Ditadura Militar é sugestivo o livro, Palavra Presa na Garganta, de Marisa Toledo, idealizadora do projeto Sarau nas Escolas e pianista do Coral Vozes da Babitonga.

Mutti

Mutti

Helmuth A. Kirinus é mestre em Filosofia pela UFPR, formado em gestão cultural e músico. Atualmente coordena 8 projetos via lei Rouanet de incentivo à cultura e 4 via Sistema Municipal de Desenvolvimento da Cultura de Joinville. É professor de violão e coordenador da Escola de Música Tocando em Frente em Itapoá. Atua também como representante técnico do setor Comunicação e Cultura dos projetos do Ampliar pelo Porto Itapoá.

14 comentários em “Melhor e Antes, por Mutti Kirinus

  • Avatar
    8 de julho de 2016 em 13:00
    Permalink

    é mostrando seus trabalhos, educando e informando aos jovens da tamanho e importancia que a cultura contribui para o seu crescimento pessoal e social

    Resposta
  • Avatar
    20 de maio de 2016 em 12:24
    Permalink

    Muito esclarecedor seu artigo. É preciso que mais pessoa tenham conhecimento do assunto p/ não sair por aí falando do que não sabe.

    Resposta
  • Avatar
    26 de abril de 2016 em 18:27
    Permalink

    Parabéns pela mateia

    Resposta
    • Avatar
      30 de abril de 2016 em 13:07
      Permalink

      Obrigado Vanilsa pela leitura e pelo incentivo. Abs.

      Resposta
  • Avatar
    20 de abril de 2016 em 22:24
    Permalink

    Enfim, apareceu alguém – no nosso meio – para levar avante o combate à pobreza de cultura, no campo da música. Esse alguém é você. Parabéns Mutti.

    Resposta
    • Avatar
      30 de abril de 2016 em 13:06
      Permalink

      Obrigado professor, só estou continuando o combate que iniciastes. Combateremos juntos, conto contigo! A sua arma é o bandolim e a minha o violão. Podemos também nos defender compartilhando artigos e reportagens que fomentem a cultura, né? Abs.

      Resposta
  • Avatar
    16 de abril de 2016 em 23:58
    Permalink

    A nossa sociedade está carente da arte/música e cultura. Todos , principalmente os jovens deveriam ter acesso a elas. Façamos, cada um à sua parte: ajudem, divulguem, prestigiem.
    Parabéns Mutti. Deus o abençoe!

    Resposta
    • Avatar
      30 de abril de 2016 em 13:03
      Permalink

      Obrigado Ana pela ajuda constante ao nosso trabalho. Se existissem mais pessoas como vc o Brasil e a Humanidade com certeza já teriam suprido há muito tempo esta carência. Amém, Deus a abençoe também. Abraços.

      Resposta
  • Avatar
    15 de abril de 2016 em 22:04
    Permalink

    Se fosse somente Chico que sofre os ataques… Tantos outros…
    A sentença de Galeano serviu pra mim. Quando me aproximo com os dois passos, o choro caminha quatro, se quatro, ele caminha oito, quando ele cansa eu me aproximo, mas aí já passou…
    Parabéns Mutti, bom lê-lo.

    Resposta
    • Avatar
      30 de abril de 2016 em 12:58
      Permalink

      Sim, quanto ao Chico agora estão postando um vídeo de uma brincadeira de estúdio de 200 onde ele diz que compra as letras da música como se isso fosse real. Mas era apenas uma brincadeira que está no dvd Carioca. A reportagem da folha de São Paulo de 20/04/2006 explica já naquela época a brincadeira. Segue o link: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u59770.shtml
      Quanto aos passos os conheço bem. Caminhamos juntos não é verdade?
      Abs.

      Resposta
  • Avatar
    15 de abril de 2016 em 08:09
    Permalink

    Parabéns, texto bem articulado…um alerta e um incentivo à arte.

    Resposta
    • Avatar
      30 de abril de 2016 em 12:50
      Permalink

      Obrigado Liliana pelos elogios e pela leitura. Nesta luta em prol da cultura e da arte somos todos protagonistas de uma nova história. Sexta sai o próximo artigo, ‘Menos é Mais’ sempre que puderes ler e compartilhar é de grande ajuda. Desculpe a demora em responder. Abs.

      Resposta
  • Avatar
    15 de abril de 2016 em 08:08
    Permalink

    Conheço o Mutti muitos anos admiro muito seu trabalho,uma pessoa qualificada no que determina à fazer.tá de parabéns pelo trabalho e dedicação.

    Resposta
    • Avatar
      30 de abril de 2016 em 12:46
      Permalink

      Obrigado Bethy pelo incentivo e pela leitura. Sexta que vem sai o próximo artigo, sempre que puderes ler e compartilhar é de grande ajuda. Abs.

      Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Deixe seu comentário via Facebook